Trecho de livro

Vento em Setembro

Vencedor do Jabuti de melhor romance literário, livro de Tony Bellotto oferece enigma a ser decifrado e aborda temas como amor, culpa e traumas familiares

Tereza Novaes 28 de Outubro de 2025

O mais recente romance de Tony Bellotto, “Vento em Setembro” (Companhia das Letras, 2024) se alicerça sobre uma estrutura de mistério que pode, a princípio, animar os fãs saudosos da saga do detetive Bellini. O livro, que levou o Jabuti de melhor romance literário, no entanto, tem uma engenharia mais complexa, abordando temas como amor, culpa e traumas familiares.

“Não é uma história de detetive, um policial clássico, mas existe um enigma a ser decifrado”, disse Bellotto sobre o livro em entrevista ao programa “Trilha de Letras”, apresentado por Eliana Alves Cruz, na TV Brasil.

Apesar de sua imagem pública estar muito atrelada à banda Titãs, Bellotto construiu nas últimas três décadas uma sólida trajetória literária com mais de dez obras publicadas, entre as quais se destacam os livros protagonizados por Remo Bellini, o primeiro deles, “Bellini e a Esfinge”, de 1995, até “Dom”, de 2020, baseada na história real de Pedro Dom e Victor Dantas, que inspirou a série de mesmo nome da Prime Video.

“A música aconteceu primeiro. Quando eu comecei a escrever para valer profissionalmente, eu já era músico consagrado e os Titãs já faziam sucesso”, lembrou na entrevista para a TV Brasil.

Quando eu comecei a escrever para valer profissionalmente, eu já era músico consagrado

“Vento em Setembro” é ambientado em dois tempos: na década de 1970, em uma fazenda em Assis, cidade do interior paulista, onde o autor passou a infância, e os dias atuais em Ouro Preto, Minas Gerais. O ponto de partida é o dia em que o filho caçula de Máximo Leonel perderia a virgindade, em uma orgia organizada pelo pai. A partir daí, o leitor é conduzido por uma trama de segredos, silêncios e desejos reprimidos, que atravessam gerações e misturam o passado autoritário à inquietude contemporânea.


Capítulo 12

Alex passava horas em silêncio ouvindo Lívia tocar flauta doce. Ela soprava as notas de “Jesus, alegria dos homens” e Alex sentia o tempo parar.

Com Lívia, Alex encontrou-se consigo mesmo. Passeavam pelo horto florestal e caminhavam quilômetros pelos bosques de pinheiros sem ver ninguém. Eles não precisavam de ninguém (nem mesmo do irmão mais velho de Alex, que estava morto, e do pai de Lívia, que tinha sumido).

Eles não precisavam de ninguém (nem mesmo do irmão mais velho de Alex, que estava morto, e do pai de Lívia, que tinha sumido)

Faziam amor à beira do lago escuro e Lívia dizia que Alex podia gozar dentro, pois ela usava diafragma. Ele não entendia o que era exatamente um diafragma, mas de qualquer jeito teria gozado dentro, pois não conseguia controlar a ejaculação quando sentia o calor úmido das paredes da vagina de Lívia apertando seu pau.

Com Alex, Lívia aprendeu a galgar trens em movimento. Uma vez foram até Paraguassu Paulista. Dormiram numa barraca e acordaram mordidos por carrapatos. Alex ensinou a Lívia que o melhor remédio para as picadas de carrapato era o vinagre.

Alex conversava com a mãe de Lívia sobre o suicídio de seu irmão mais velho e ela lhe falava de um sujeito chamado Ronald Laing e do conceito da “antipsiquiatria”, que ele havia criado.

Ela disse que seu marido, o pai de Lívia, tinha caído.

“Caído onde?”

“Nas garras da repressão. No poço da ditadura”, ela explicou, começando a chorar. Lívia consolou a mãe: “Por que você tem certeza de que ele foi preso? Ele pode ter fugido da gente, dito que ia comprar cigarro pra nunca mais voltar. Muitos homens fazem isso, eu li. Mas ele também pode se arrepender e aparecer, mãe. Ele vai voltar”.

A mãe de Lívia enxugou as lágrimas: “Deus te ouça, minha filha”.

Mas ela não acreditava em Deus. Nem o pai de Lívia.

Lívia deu a Alex um livro de Lao Tsé, o Tao-Te King. Contou que seu pai dissertava sobre budismo, tai chi chuan e sobre o grupo terrorista alemão Baader-Meinhof.

O pai e a mãe de Lívia liam o I Ching e consideravam as orientações sugeridas pelo oráculo chinês com a mesma devoção com que admiravam o Manifesto Comunista de Marx e Engels.

A mãe de Lívia disse a Alex que ele devia continuar perseguindo a verdade até encontrá-la, pois a verdade se revelava em situações e lugares inesperados.

Alex ouvia nomes estranhos: Sartre, Lacan, Ionesco, Costa-Gavras. Por sugestão de Lívia, leu livros com títulos enigmáticos como Cem anos de solidão e O jogo da amarelinha. Gabriel García Márquez e Julio Cortázar faziam parte de um clube secreto para o qual Alex era convidado como aprendiz.

Um dia Lívia disse que o livro preferido de seu pai era Pedro Páramo, mas que não tinha como lhe mostrar o livro, pois ele sumira junto com o pai.

“O legal desse livro”, disse Lívia, “é que os personagens estão todos mortos, mas a gente não percebe isso logo de cara.”

“Você leu?”, perguntou Alex.

“Não. Meu pai me contou a história.”

A mãe de Lívia às vezes andava nua pela casa, como se comentava na cidade. Mas ela não fumava maconha na frente da filha, embora fumasse quando estava fechada no quarto ou no escritório. Lívia e Alex sentiam o cheiro, apesar da mãe acender incensos para disfarçar. Alex já conhecia o cheiro da maconha, César e Winston costumavam fumar escondidos dele.

A mãe de Lívia passava muito tempo ao telefone, e chorava. Às vezes gritava.

Lívia cochichava para Alex: “Tadinha. Ela pensa que meu pai foi preso, mas acho que ele fugiu com outra mulher. Com uma aluna dele mais nova que a minha mãe. Eles têm um caso, eu sei”.

Um dia a mãe de Lívia precisou sair às pressas da cidade. Lívia, claro, foi embora com ela. Os pais de Lívia estavam realmente sendo perseguidos por agentes de repressão do governo militar. O pai desaparecera havia meses no Rio e a mãe, alertada por companheiros de militância, escapou correndo de Assis para não ser presa, torturada e, quem sabe, morta.

Os pais de Lívia estavam realmente sendo perseguidos por agentes de repressão do governo militar. O pai desaparecera havia meses no Rio

Lívia e a mãe foram para a Cidade do México, depois para Paris.

Lívia e Alex sofreram com a separação abrupta, pensaram que iriam morrer de amor.

Por alguns meses, as cartas que Lívia enviava para Alex não continham endereço. Ela escrevia de embaixadas e comitês políticos. Às vezes mandava um cartão-postal de Barcelona, Amsterdã, Berlim, mas sem endereço de remetente. Alex respondia a toda correspondência que recebia dela, sem ter, porém, para onde enviá-la. Guardava as cartas recebidas junto com as que escrevia numa caixa de sapato vazia que havia pegado na loja do avô.

Um ano depois Alexandre não recebia mais cartas de Lívia.


Parte V – capítulo 1

A reunião do condomínio foi o grande acontecimento da minha semana.

Debatemos por horas a questão das manchas e rachaduras na fachada do velho Sabin, exemplo da arquitetura dos anos 1950 em Higienópolis, com status de patrimônio histórico e cultural. Depois que todos concordaram em autorizar a pintura, Mary Marcolla (a perua digital influencer e síndica do edifício Albert Sabin, em que se insere meu apê) levantou uma nova questão: o Sabin deveria ser pintado da cor do projeto original (“Um rosinha bem cafona”, nas palavras dela) ou deveríamos ousar e repaginar o “New Sabin” (ela usou esse termo) com cores berrantes e intensas que melhor expressassem o espírito da nossa época?

Mais algumas horas se esvaíram nessa discussão até que, graças ao bom senso dos moradores mais antigos (eu incluído), prevaleceu a opção de preservarmos as cores originais do projeto do arquiteto Franz Heep.

Quando achei que não restava mais energia aos condôminos depois de tantas discussões irrelevantes, Mary introduziu o assunto principal: como reagiríamos à inclemente invasão das calçadas do bairro por viciados em crack?

E outras intermináveis horas escorreram tratando do assunto, como se o tempo estivesse sendo medido por ampulhetas entupidas. As propostas mais variadas surgiram, desde o generoso acolhimento dos viciados em nossos próprios lares até a sumária execução de qualquer vagabundo que ousasse perambular pelas imediações do glorioso Albert Sabin.

E outras intermináveis horas escorreram tratando do assunto, como se o tempo estivesse sendo medido por ampulhetas entupidas

No fim da reunião, eu já não lembrava o que havia sido decidido.

À noite perdi o sono. Fiquei pensando.

Quem era meu pai, afinal de contas?

Até agora, Jaques Zimmerman, o marchand.

Jaques era um homem alegre, gostava de fazer piadas e de contar histórias. Mas às vezes ficava melancólico e introspectivo. Ele me levava ao estádio do Morumbi para ver os jogos do São Paulo, mesmo não gostando (e pouco entendendo) de futebol.

Ele me levava ao estádio do Morumbi para ver os jogos do São Paulo, mesmo não gostando (e pouco entendendo) de futebol

Chegava a cochilar durante as partidas.

Uma vez o flagrei na galeria de arte que administrava, vazia depois do fim do expediente, contemplando solene uma marina de Pancetti. Ele não percebeu quando me aproximei e levou um susto ao se dar conta da minha presença. Naquele fim de tarde me confessou que gostaria de ter sido um pintor de marinas.

“Marinas?”, perguntei. “Mas moramos em São Paulo.”

“Pois é. Eu gostaria de morar em Santos”, disse.

“Pai, você não tem nada a ver com praia.”

“É verdade. Não me vejo de calção, deitado na areia, tomando sol besuntado de bronzeador. Não. Mas gostaria de ficar observando o mar de longe, vestido, sentado num banco protegido do sol.”

Ficamos um tempo em silêncio olhando a marina de Pancetti.

Na tela, céu e mar se confundiam, o mar verde, o céu azul.

“Nas marinas do Pancetti o mar substitui o chão”, disse meu pai. “Repara. A areia é inconsistente e neutra. O chão é o mar, é ele que pesa, é o mar que sustenta o céu. É o mar que se contrapõe e ao mesmo tempo se mistura com o céu. É o mar que compete com o céu. Não o chão.”

Produto

  • Vento em Setembro
  • Tony Bellotto
  • Companhia das letras
  • 296 páginas

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